Rosângela Rennó
http://www.rosangelarenno.com.br/bibliografia/pt
ALZUGARAY, Paula. “Rosângela Rennó: o artista como narrador”. São Paulo: Paço das Artes, 2004. Folder de exposição [exhibition folder].
Rosângela Rennó: o artista como narrador / Paula Alzugaray
Com uma obra voltada para as relações de intertextualidade entre a fotografia, o texto, o vídeo e o cinema, Rosângela Rennó aplica sobre textos o mesmo sistema de trabalho que opera sobre imagens. Ao manipular uma fotografia, retira-lhe o contraste ou altera-lhe a cor, de modo a criar uma opacidade que dificulte sua legibilidade. Nos trabalhos com textos jornalísticos, incide cortes, eliminando referências geográficas, temporais e identitárias. Molda-os de acordo com o interesse de torná-los aptos a representar não apenas um acontecimento, ou um personagem, mas qualquer um.
Seu Arquivo universal, assim como o vídeo Espelho diário e outros trabalhos que exploram narrativas, são inventários de documentos apagados e reescritos. Ao reduzir a condição “jornalística” do texto, a artista proporciona-lhe uma abertura narrativa que o aproxima da ficção. A alteridade verificada pela obra de Rosângela Rennó é, portanto, uma coletividade anônima, sem identidade precisa. Suas operações de redução transformam imagem e texto em espaços brancos, potencialmente preenchidos pelo espectador. O que era notícia de jornal tornase espelho. “Para mim, os brancos e as amnésias são mais interessantes que a memória”, diz ela.
(…)
Assim como a fotografia brasileira contemporânea esgotou sua função de captar a alma e desvendar a identidade do brasileiro, o cinema documental, em crise, ou pós-crise, também procura se afastar dos tipos brasileiros paradigmáticos da sociologia ¬– o camponês, o favelado, o índio, o seringueiro, o operário ¬–, mirando uma ampliação de seu espectro de identidades. O vídeo Espelho diário (2001), em que a artista Rosângela Rennó interpreta os papéis de dezenas de mulheres de nome Rosângela, introduz ao rol de arquétipos identitários brasileiros tipos correntes e nada óbvios, agregando frescor e perplexidade a um campo minado por previsibilidades. Entre elas, a policial loura burra, a pombagira, a presa, a retirante, a assassinada, a mãe solteira favelada, a mãe de 33 filhos, a mulher bem-amada, a noiva, a menina abusada, a dona de casa classe média, a perua e ¬– uma das categorias mais exploradas pelos meios de comunicação – a vítima de morte violenta.
Por outro lado, Espelho diário faz parte de um grupo de trabalhos de Rosângela Rennó que exploram as narrativas. De volta a O narrador, noto, na vasta coleção de textos dos trabalhos da série Arquivo universal, uma tensão permanente entre o que Benjamin discriminou como “narrativo” e como “informativo”. Mesmo que extraídos de notícias de jornal, os textos interpretados ou reproduzidos por Rennó ganham uma aura levemente fantasiosa, que os aproxima do texto “narrativo” descrito por Benjamin: “O leitor é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação”.
O trabalho faz referência ao tablóide britânico Daily Mirror, mas, ao operar um deslocamento do texto de sua esfera original de notícia jornalística, Rosângela incide contra o espelho. “Por outro lado, não é verdade que toda notícia de jornal diz respeito a nós?”, pergunta uma das Rosângelas, em declarado confronto ao espelho que separa as dimensões do pessoal e do social, do íntimo e do público, do eu e do outro.
Há uma sentença que se repete quando se fala em Rosângela Rennó: “A fotógrafa que não fotografa”. Mas não foi, e nem é, sempre assim. A artista passou a ser reconhecida dessa forma a partir do momento em que decidiu deixar de fotografar, substituindo o ato fotográfico pela apropriação de imagens já existentes. Isso foi em meados da década de 1980, quando ainda vivia em Belo Horizonte e começou a trabalhar com imagens encontradas em álbuns de retratos. Esse primeiro impulso arqueológico deu origem à série Pequena ecologia da imagem, quando seu olhar voltou-se para imagens de pouca definição e legibilidade, com figuras obscurecidas, veladas, fora de foco, ou apenas sugeridas. Mulheres iluminadas (1988) e A mulher que perdeu a memória (1988), entre outras imagens, prenunciam a investigação que Rosângela Rennó empreenderia ao longo das décadas seguintes sobre a memória, a identidade e seus apagamentos.
Até hoje, Rosângela se reconhece muito econômica quando fotografa e diz que documenta apenas o que acha que vale a pena guardar, “quase sempre as marcas da presença humana no mundo”. Em vez de fotografar, colecionar. O interesse pelas imagens descartadas e o hábito de colecionar (álbuns, fotos, textos etc.) foram decisivos para a formação de suas estratégias de trabalho. Os primeiros grandes “achados” datam de 1988, quando, ao começar uma pós-graduação em cinema, na Escola de Comunicações e Artes da USP, desenvolve uma série de fotografias a partir de fotogramas jogados nos lixos próximos às salas de montagem. Pouco depois, ao mudar-se para o Rio de Janeiro, começaria a vasculhar os antigos estúdios de retratos 3x4 do centro da cidade, recuperando arquivos mortos de negativos e cópias esquecidas.
A coleção detonaria uma contundente reflexão acerca do valor social e do poder simbólico da fotografia, expressos em trabalhos instalativos como Duas lições de realismo fantástico (1991), a série A identidade em jogo (1991), Atentado ao poder (1992) e Imemorial (1994). Apontada como uma das primeiras artistas brasileiras a deslocar a fotografia do campo bidimensional para o território da instalação artística, Rosângela Rennó se tornaria logo uma referência em qualquer discussão acerca da expansão da imagem fotográfica.
Além disso, todas as suas séries que reprocessam imagens de arquivos foram decisivas para os conceitos de fotografia contaminada e fotografia de apropriação, que surgiram no início dos anos 1990. Curador da mostra Fotografia contaminada (Centro Cultural São Paulo, 1994), o crítico Tadeu Chiarelli publicaria um texto em Lapiz: Revista Internacional de Arte, em julho/setembro de 1997, creditando à visibilidade da obra de Rosângela Rennó a “maioridade internacional” da fotografia brasileira.* A artista está entre os artistas brasileiros de maior projeção internacional, com obras nos acervos de instituições como The Art Institute of Chicago, The Museum ofContemporary Art, de Los Angeles, Tate Modern e Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, de Madri, entre outras.
A expansão da imagem, na obra de Rennó, atinge outro patamar de complexidade a partir dos trabalhos com sua coleção de textos de jornal que fazem referência à fotografia. As várias séries que constituem o projeto em processo Arquivo universal (desde 1992) apresentam textos usados e manipulados como fotografias. Os critérios para seleção e edição dos textos são os mesmos usados para as fotografias. Assim como na imagem, a manipulação dos textos ocorre no sentido de eliminar especificidades e referências espaço-temporais. Em entrevista ao crítico e curador Paulo Herkenhoff, Rosângela afirma que sob orientação do professor Eduardo Peñuela, na USP, “houve um aguçamento da vontade de trabalhar com jogos intertextuais. Daí nasceu o interesse pelo texto substituindo a imagem”.**
Assim como o interesse pela intertextualidade visual já estava presente nos anos de formação, a experiência com o cinema também é uma condição inerente ao trabalho da artista. Mesmo que a obra em vídeo só viesse a acontecer mais adiante, a partir de Vera Cruz (2000) e Espelho diário (2001), as questões relacionadas à imagem em movimento que surgiram nas aulas de cinema foram imediatamente incorporadas à pesquisa artística de Rennó.
Elas aparecem já em uma de suas primeiras individuais, Anti-cinema, realizada na Galeria Corpo, em Belo Horizonte, em 1989. Na exposição, alguns trabalhos prestavam homenagem a Muybridge e Etiene-Jules Marey, os pais da fotografia seqüencial, e aos artistas Marcel Duchamp e Jan Dibbets. Tratava-se de uma série de fotografias montadas sobre discos LP, que deveriam ser “rodadas” em tocadiscos antigos. Outras obras dialogavam diretamente com a matéria-prima do cinema: uma série de fotografias de grande formato, feitas a partir dos fotogramas de cinema achados no lixo da ECA-USP. Outro objeto, Detector de primaveras (1989), feito com um antigo flash de bulbo, girava e piscava sobre um pedestal e completava a reflexão sobre a interlocução entre as artes visuais, a fotografia e o cinema.
Dois anos depois, Lição de realismo fantástico (1991), sua primeira experiência com projeção de imagens em movimento, consistia em uma instalação com dois pedestais de onde surgiam imagens fantasmagóricas, projetadas sobre a parede e girando sem parar. O dispositivo evocava um sistema muito antigo de produção de “fantasmagorias”, comum às lanternas mágicas giratórias do século 18.
O fascínio da artista por maquinárias e aparelhos cinéticos ganhou reforço com Experiência de cinema (2004), que funciona a partir de um dispositivo de projeção de imagens sobre fumaça. Mais uma vez evocando o desaparecimento da imagem, o trabalho articula o mesmo conceito que levou Rosângela Rennó a deixar de fotografar: a crítica sobre o fluxo contínuo de produção e consumo de imagens, que levam a um inevitável mecanismo seletivo da memória, conduzindo, em última instância, a uma amnésia social.
Biografia - Leitura Técnica
Rosângela Rennó Gomes (Belo Horizonte MG 1962). Artista intermídia, fotógrafa. Forma-se em arquitetura pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, em 1986, e em artes plásticas pela Escola Guignard, em 1987. No final da década de 1980, cria suas primeiras obras, que têm como base fotografias de álbuns de família. Entre 1991 e 1993, integra o Visorama, grupo de estudos de arte contemporânea. Em suas fotografias, objetos, vídeos e instalações, a artista aborda discussões acerca da natureza da imagem. Realiza trabalhos com base em fotos 3 x 4, produzidas em estúdios populares. Em 1992, inicia o projeto Arquivo Universal, um banco de dados virtual, composto por trechos de textos jornalísticos, que contêm referências a imagens fotográficas. Em paralelo, trabalha com fotografias obtidas em arquivos públicos e privados, como as imagens de presos do extinto Departamento de Medicina e Criminologia, pertencentes ao Museu Penitenciário Paulista. Titula-se doutora em artes pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo - ECA/USP, em 1997. Recebe bolsas da Civitella Ranieri Foundation, de Umbertide, Itália, em 1995; da Fundação Vitae, em 1998; e da John Simon Guggenheim Memorial Foundation, de Nova York, em 1999. Em 2003, é publicado o livro Rosangêla Rennó: [O Arquivo Universal e Outros Arquivos], pela Cosac & Naify.
Comentário Crítico
Rosângela Rennó compõe sua obra pela apropriação de imagens e textos de autores anônimos. Em 1985, realiza o trabalho Hora do Ângelus, em que combina desenho e fotografia. Conclui o curso de artes plásticas em 1987. A partir daí trabalha com peças agrupadas em séries. Na série Conto de Bruxas (1988), subverte as ilustrações de histórias infantis e lhes dá um caráter surrealista. Em 1988, cria a série Pequena Ecologia da Imagem, em que, pela primeira vez, se apropria de fotografias de autores anônimos. As obras de sua individual de 1989, Anti-Cinema - Veleidades Fotográficas, na Sala Corpo de Exposições, em Belo Horizonte, são feitas com manipulação de fotogramas de cinema recolhidos de arquivos.
Muda-se para o Rio de Janeiro em 1989. Passa a utilizar fotografias como matéria para a composição de objetos e progressivamente adquire interesse pelo espaço. Trabalha com publicações, como O Grande Livro do Adeus (1989) e Private Eye (1992). Também utiliza fotografias em trabalhos lúdicos, como Puzzles (1990). Depois de 1991, faz instalações, como Duas Lições de Realismo Fantástico (1991) e Atentado ao Poder (1992). O crítico de arte Paulo Herkenhoff comenta que, na época, a temática da artista desloca-se "dos conflitos da esfera privada para os da esfera pública ou coletiva".1 Dialoga com a obra de artistas como Christian Boltanski (1944) e John Baldessari (1931).
Em 1993, inicia o projeto Arquivo Universal. Nesta série, substitui as imagens por notícias sobre a fotografia. Em outras instalações, combina imagem e texto, como em In Oblivionem (1994/1995). São textos que falam da imagem ausente. A manipulação dos significados da escrita guarda relação com o trabalho do artista norte-americano Joseph Kosuth (1945). Em 1994, participa da 22a Bienal Internacional de São Paulo com a instalação Candelária. Na série Cicatriz, de 1996, trabalha com imagens recolhidas do Museu Penitenciário Paulista. Negativos do mesmo arquivo são utilizados no conjuntoVulgo, de 1998. Em 2003, participa da Bienal de Veneza e monta retrospectiva no Centro Cultural Banco do Brasil - CCBB, no Rio de Janeiro, com trabalhos de 1990 a 2003. Entre eles, mostra a série Bibliotheca (2002), feita com imagens recolhidas de álbuns fotográficos de anônimos. Esta série é exibida, no mesmo ano, no Museu de Arte da Pampulha, em Belo Horizonte, e na Galeria Fortes Vilaça, em São Paulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário