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Henrique Oliveira na Baró Cruz
As diferentes formas de abordagem da pintura na arte contemporânea é um dos focos de discussão desta exposição que propõe um paralelo entre o tempo sugerido pelo movimento de dissolução das formas que compõem a superfície dos quadros e a temporalidade da matéria desgastada dos laminados de madeira que formam os Tapumes.
Na sua obra a pintura aparece tanto como uma prática possível de ser atualizada, como também um conceito que orienta outras construções de caráter pictórico.
Tanto nas pinturas como na instalação, é evidenciado o processo de construção por camadas. Tensionadas por movimentos orgânicos, as protuberâncias e ranhuras sobre as superfícies indicam a impermanência dos materiais no devir - sensação de tempo esta que contrasta com o tempo imediato sugerido pela potencialidade de movimento que organiza as formas.
O caráter orgânico está presente nas curvas que compõem as espessas camadas das suas pinturas e também no material usado na instalação que encerra o corredor da galeria. Esta é feita com lascas de madeira retiradas de chapas de compensados usados na construção civil.
Usadas como material descartável, estas chapas são recolhidas pelo artista nas ruas da cidade - suas camadas são separadas e os pedaços são colados, uns sobre os outros, num processo de reconstrução sobre as paredes do espaço expositivo. Como uma pintura feita in loco, a obra não pode ser removida do seu lugar de origem.
Nos quadros, a idéia de colagem orienta a sobreposição das camadas. Ao contrário da instalação, onde de fato há um processo de colagem, mas não um resultado de colagem (uma vez que este processo resulta em unidade visual), as pinturas são formadas pela sobreposição de diversos planos, bem distintos por áreas e cores bem marcadas, como se tivessem sido colados, embora sejam na verdade, o resultado de pinceladas, raspagens, empoçamentos, gotejamentos e escorridos.
O tempo geológico das estrias e rachaduras, do magma endurecido das tintas que sedimentam sobre suas telas, contrasta com as cores de um mundo artificial que veicula efemeridades diariamente nas cidades e nos meios de comunicação. Urbanidade que está presente na carne dos tapumes, cuja deterioração indica a passagem do tempo e a transformação da natureza. A nulidade de todo construto, minuciosamente elaborado para desaparecer.
A obra Tapumes
Tapume, do verbo “tapar”- anteparo, ger. de madeira com que se veda a entrada de uma área ou construção, etc. qualquer coisa que tapa ou esconde. ETIM tapar + ume. (dicionário Houaiss).
Nas obras da série Tapumes, as placas de madeira usadas para impedir a passagem ou a visão, para dentro de algum lugar, são trazidas à visibilidade proposta pelos eventos expositivos. Numa operação de inversão, é trazido à visibilidade, um objeto originalmente usado para impedir que se veja o que está do outro lado.
No século 20, a progressiva eliminação da ilusão espacial em direção ao plano literal do quadro, levou muitos pintores modernos a trabalhar a espessura da pintura em detrimento do espaço virtual. Neste ponto da história da arte moderna, parece surgir um problema - muitas destas obras pareciam não se distinguir de outras superfícies do mundo, como muros, rochas, chãos, etc. O monocromo pressionava as bordas do quadro que, longe de ser uma superfície permeável ao olhar, era agora um objeto que se relacionava com o seu entorno.
Os Tapumes são pensados a partir desse espaço plano da pintura moderna que, como num beco sem saída, procura os limites do objeto e a sua dimensão material como rotas alternativas.
Feitos com lâminas de madeira usada, os Tapumes tratam da pintura não apenas como imagem, mas sobretudo como objetos que estão inseridos na arquitetura. A arquitetura é o suporte e a pintura é também uma parede.
Enquanto a idéia clássica do quadro como uma janela, pressupõe a suspensão do tempo em uma imagem estática, nessas obras a idéia de tempo é que se apresenta como imagem. É ele (o tempo) que "pinta", imprimindo suas marcas na matéria. Duas idéias de movimento estruturam essas obras - o movimento representado pela forma final que o trabalho espacializa, e o movimento da passagem do tempo que se evidencia nas camadas de deterioração do material.
No lugar do trabalho do pintor, há um processo de seleção e combinação das peças recolhidas. Este processo é semelhante à aplicação da tinta por camadas - uma vez fixas as partes maiores à parede, os pedaços menores vão sendo combinados, tensionados e recobertos por partes mais finas, do fundo para a superfície.
O resultado deste processo é apresentado no lugar tradicionalmente destinado à arte, numa operação de deslocamento (de um material encontrado nas ruas para dentro do espaço expositivo) que propõe um “olhar pictorializante” sobre as superfícies desgastadas do mundo.
Esta experiência pictórica proposta não é apenas visual, mas também corporal. A dimensão e a natureza destes materiais falam de lugares por onde se passa, onde se entra.
Como quadros que se estendem, as lascas dos Tapumes se espalham pela parede, tateando o espaço e se acomodando à morfologia dos edifícios. Uma vez acomodadas a esta "geografia", essas obras não podem mais ser deslocadas, nem remontadas. Cada trabalho é único e sua reconstrução, inviável. O mesmo material, é no entanto, sempre reutilizado em novas obras.
Como uma única obra que sempre se transforma, em cada local que são apresentados, os tapumes ganham uma nova forma. E neste fluxo, a matéria está sempre sujeita a uma perda - a cada processo de montagem e desmontagem as partes vão se quebrando e diminuindo. Então novos pedaços vão sendo acrescentados e esta matéria vai se renovando, lentamente.
As pinturas
Nestas pinturas, a técnica e a linguagem aparecem como o assunto principal. Não há uma narrativa ou tema que determine um ponto de partida. São obras que abdicam de uma concepção prévia, embora se mantenham entre algumas referências históricas da arte do século vinte e resquícios de imagens de consumo de massa.
A linguagem que caracteriza estas pinturas, embora não esteja diretamente ligada à idéia da especificidade do plano (como por exemplo, Clement Greemberg aponta no texto Pintura Moderna) , tampouco se coloca em oposição a esta, como poderia sugerir o caráter irônico que por vezes emerge em alguns trabalhos. É uma pintura que se dispõe das suas especificidades, mas não tem como premissa a supressão da ilusão espacial em busca do plano.
Como obras pictóricas, transitam entre referências a categorias usadas para classificar a arte do século vinte. Embora rejeitem o caminho da síntese modernista, não se entregam à expressividade e à subjetividade do gesto (subjetividade no sentido de descompressão do ego) - que apesar de aparecer como elemento estruturador do espaço, é antes um gesto pensado, que desenha através das pinceladas.
Além desta gestualidade controlada, outros procedimentos pictóricos são usados para estruturar o plano dos quadros. Evitando passagens cromáticas graduais, a pintura é formada por fragmentos, como em uma colagem - criando um constante ir e vir entre o plano do quadro e a ilusão de profundidade, esbarrando sempre numa referência a uma representação que nunca se completa.
Neste caminho que ainda delega à imaginação um papel mitigado no mundo atual, a pintura procura os interstícios pelos quais possa seguir se expandindo como uma forma de conhecimento humano, assim se justificando na impossibilidade da substituição de alguns aspectos constitutivos da experiência visual pictórica, como a fruição de sua materialidade e as possibilidades construtivas inerentes a seu meio.
Há um cuidado para que esta prática não seja apenas uma representação da imaginação, mas que entenda a si mesma como um meio que, embora esteja assentado sobre uma tradição, busca fundar seus códigos visuais na sua própria práxis - entre o signo de uma ausência e a presença sensual da superfície.
Henrique Oliveira
Henrique Oliveira é artista plástico, mestrando em poéticas visuais pela ECA/USP, onde atualmente desenvolve, com o apoio da FAPESP, pesquisas de materiais ligados à pintura. Participou de mostra da FUNARTE em Paris no Ano do Brasil na França, do estúdio-residência Ateliê Amarelo em São Paulo e foi um dos ganhadores do prêmio Projéteis FUNARTE 2006. Tem realizado exposições pelo Brasil, como na Casa da Cultura da América Latina em Brasília, 5º Salão Nacional de Arte de Goiás, Visualidade Nascente - Centro Universitário Maria Antonia - São Paulo e 9ª Bienal de Artes Visuais de Santos, entre outras.
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