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sexta-feira, 11 de junho de 2010

Flávio de carvalho: O Nu psicológico

Por Anderson Benelli



FLÁVIO DE CARVALHO: O NU PSICOLÓGICO

Flávio de Carvalho explorou o estudo do nu clássico. Aceito pelos valores tradicionais da arte, o artista o usou para romper com o próprio conservadorismo da sociedade e arte acadêmica. Flávio de Carvalho com sua forte pintura expressionista chocou a sociedade e o meio acadêmico, chegando a ser rotulado por grande parte da crítica como “pintor maldito”.
Após a leitura de alguns livros e textos sobre o artista, as dificuldades se tornaram presentes na interpretação dessas obras. Durante as conversas e trocas com os professores orientadores desse projeto interdisciplinar, José Minerini Neto e Nelson Somma Jr., uma questão foi levantada: qual a poética do artista? Uma problematização que fez com que surgisse outra série de indagações. De súbito, no momento da descoberta de sua obra, surgiu um momento EUREKA, onde toda informação adquirida organizou-se em uma única reflexão. Enquanto nossas mentes estavam longe de Flávio de Carvalho e suas problematizações, ocorreu uma introspecção sobre a “tese” do próprio, a Cidade do homem nu:


“Nos dias de hoje, a fadiga é manifesta, o homem máquina do classicismo moldado pela
repetição continua dos feitos seculares do cristianismo, não mais pode aturar a monotonia
dessa rotina. Ele perecerá asfixiado na seleção lógica, pelo mais eficiente, pelo homem natural.
A fadiga ataca, ele precisa despir-se, apresentar-se nu, sem tabus escolásticos, livre para o
raciocínio e o pensamento”. (CARVALHO, Apud. DAHER, 1982, p. 100.).


Esta tese acabou sendo o principal veículo a nos levar ao desenvolvimento da interpretação sobre a obra do artista.
Recebemos o texto Cidade do homem nu, como um auto-retrato do artista e de sua obra, exatamente como seu auto-retrato pintado, com isso percebemos os dois trabalhos como sendo uma única obra, e não só os dois, mas toda sua obra plástica se converte em uma, se ligadas por essa poética.
Partindo do pensamento: que todos nascemos nus, (não estamos nos referindo a roupas) puros, libertos de qualquer preconceito e valor. Com o passar dos anos, como um baú vazio, somos preenchidos, contaminados por heranças culturais e valores e muitas vezes aceitando-os como certos e inflexíveis, até que o baú fique repleto de informações que geram indagações: quanto de si há nesse baú? Daí por diante apontamos duas alternativas: aceitar essa herança, ou começar a rever princípios estabelecidos, para que possa acrescentar novos e próprios valores a esse baú.
Flávio de Carvalho como todo bom artista vanguardista, através de sua obra, optou pela segunda escolha, propondo a si mesmo, à sociedade e a seus retratados, que se despissem desses valores, ou seja, que esvaziassem seus baús, abrindo assim, espaço para acrescentar novos e próprios valores a si mesmos. Talvez por isso, o nu é tão presente em sua obra, nu este, que vai muito além do nu carnal, favorecendo o surgimento do “homem natural”, buscado desde os primórdios do expressionismo como mostra essa passagem de Behr:


“ Para os Brücke[1],, também a representação da sexualidade franca e aberta a[Image]linhava-se a sua
interpretação do “natural”, em oposição as relações
“artificiais” entre os sexos. O nu feminino e as
insinuações eróticas na interação entre artista e modelo
ocupavam o primeiro plano em suas representações
do interior dos ateliês”. (BEHR, 2001, pg. 19).


Isso também pode explicar a predileção do artista pelo nu feminino. Em um tempo de rígidos valores conservadores em que a mulher não tinha voz, nos desenhos de traços fortes e agressivos do artista, a mulher retratada grita, se rebela, se liberta de toda repressão. O traço expressionista rompe a barreira do psicológico, revelando o ser reprimido que dorme no interior da pessoa. Nada mais apropriado do que o traço marcante e espontâneo usado pelo artista, lembrando um esboço, para revelar o oculto no lado obscuro do retratado. O contraste explorado faz com que tenhamos a sensação de que o natural insurge da escuridão.

A comparação entre o nu figurativo de Flávio, com os nus clássicos é inevitável: as figuras nuas da renascença, usadas para representar Deusas e Deuses ganham uma expressão serena elevando a imagem à divindade, Flávio de Carvalho, expõe exatamente o contrário, representa o ser humano comum e revela seus desejos mais íntimos.
Portanto, a exposição ao nu não é superficial e nem se limita aos seus desenhos, englobando, senão toda, quase a totalidade sua obra. Em sua pintura, liberto dos traços fortes e agressivos encontrados em seus desenhos, o artista explora as cores, para vencer a barreira imposta pelo psicológico e despir o retratado. A pele é considerada uma proteção, uma armadura, uma muralha a ser superada, para que assim, o eu escondido possa ser alcançado.
Com pinceladas fortemente gestuais e cores não menos intensas, o Flávio pintor abre mão do tecido, revelando músculos com uma textura convidativa ao toque, chegando ao ápice do expressionismo e dando-nos a impressão que o ser revelado pode saltar da tela a qualquer momento, surpreendendo até mesmo o próprio retratado, como foi o caso de Mário de Andrade:


[Image]“Quando olho para o meu retrato pintado por Segall me sinto bem. È o eu convencional, o decente, que se apresenta em público. Quando defronto o retrato feito pelo Flávio, sinto-me assustado, pois vejo nele o lado tenebroso de minha pessoa, o lado que escondo dos outros.”
(ANDRADE, Apud. OSORIO, 2000, p. 28).


Percebe-se também que nos retratos pintados pelo artista, certo destaque é dado às mãos, possível referência vinda do teatro, área onde também teve importante atuação na qual as expressões faciais acompanhadas pelos gestos corporais (e das mãos), também acrescentam forte expressão aos
personagens pintados.


Retomando a poética da cidade do homem nu e do homem natural, ao qual o artista se refere, interpretamos com esse olhar a série trágica de sua mãe morrendo.
Partindo da condição natural da própria vida, depois do nascimento a única certeza que se tem é a de que morreremos. Como, quando e onde? Não sabemos. Será esse o porquê da morte por si só nos chocar tanto? Nada mais natural no ciclo da vida do que o filho presenciar a morte da mãe, um desejo de toda mãe de partir antes do filho. Então porque o fato de Flávio (filho e artista) registrar o que seria natural chocar tanto?
Retomemos o “baú” e tomemos como exemplo os egípcios. Apesar de a arte egípcia abordar a morte há muito tempo atrás, este fato não contribuiu para a aceitação desta. Contrariamente, os faraós eram enterrados com suas riquezas e com escravos sacrificados, em uma tentativa de levar a vida após a morte, indicando assim, uma não conformação com a morte. E se tirássemos esses cultos aos mortos herdados de civilizações passadas do “baú”?
Talvez, receberíamos a morte mais naturalmente.
Não pretendemos afirmar que não sentiríamos dor ao perder um ente querido com qual convivemos anos, ainda mais se tratando de uma mãe, na qual todos sabem a grande importância; continuaríamos sofrendo muito. Certamente Flávio de Carvalho sofreu essa dor. Dor essa, que assim como a morte, faz parte do ciclo natural da vida. Mas para uma sociedade que recebeu de herança, conservadorismo, tabus e preconceitos. O fato de um filho ter registrado e exposto a mãe morrendo na Série Trágica, não foi nem será aceito passivamente, o que talvez explique o rótulo que recebeu de “pintor maldito”.
Nessa série, os traços fortes, ruidosos e agressivos do expressionismo de Flávio de Carvalho, revelam ao mesmo tempo a dor, a angústia e o sofrimento de mãe e do filho. O obscuro da morte toma conta de ambos, a luz apagando-se, a vida esvaindo-se, o último suspiro de vida de Dona Ofélia e mais um dos muitos suspiros de dor, por parte do filho. Diante da morte, ambos desprotegidos, ambos nus diante da condição natural da vida.



A experiência nº 2

Durante uma procissão em 1933, Flávio de Carvalho caminhou contra o fluxo de fiéis de boné e sem nenhuma proteção. O objetivo da experiência foi testar o limite do “homem de fé”, resultando na fúria da multidão que parte para cima do artista provocador, que só não foi linchado porque houve interferência policial.
O artista, acuado pela multidão temeu pela sua vida. Esse sentimento de medo e de estar próximo da morte é percebido também nas obras: Assistia emocionado o meu desmanchar (nanquim), A inferioridade de Deus (óleo) e a Ascensão definitiva de Cristo (óleo).
Flávio de Carvalho se expôs “nu” diante da multidão vestida de valores calcados na tradição cristã, que se enfureceu pelo simples fato dele estar caminhando contra o fluxo da procissão de boné e contra essa tradição. Porém, o objetivo do artista foi alcançado: a multidão de “fiéis” se despiu de seus valores religiosos deixando o lado obscuro vir à tona, libertando o selvagem de cada um, libertando o homem natural.
Apesar de alguns dizerem que a Cidade do homem nu foi puro romantismo. Flávio de Carvalho, artista de vanguarda atuando à frente dos valores sociais e artísticos de seu tempo, contribuiu ativamente, para a sobrevivência do modernismo depois da semana de Arte Moderna de 1922. Flávio, não só levou a sério como viveu sua tese, já que sua obra mistura-se com sua vida.

“Porque entravar o progresso com o velho mecanismo escolástico, porque venerar o passado, quando não
conhecemos nenhum pensamento, porque abafar os nossos desejos, quando não conhecemos a natureza última
desses desejos, não conhecemos se quer as conseqüências desses desejos”.
(CARVALHO, Apud. DAHER, 1982, p.100).




[1] Die Brücke, grupo percussor do Expressionismo na Alemanha.

Anderson Benelli
Colaboração:
Ana Carolina Beraldo
Bruna Benitez
Stephani Kiss

Um comentário:

  1. Oi pessoal tudo bem? Nossa o blog esta lindo Lara. Licença pra chegar. Eu tomei a liberdade de postar minha pequena e humilde pesquisa sobre o Flávio de Carvalho e logo abaixo anexei o texto A cidade do Homem Nu de autoria do mesmo pra quem ainda não leu e se interessar.
    P.S Recomendo, ao meu ver, é ótimo e revela muito da poética do artista.

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