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domingo, 20 de junho de 2010

Harun Farocki

Introdução ao cinema-ensaio de Harun Farocki


No filme Nicht löschbares Feuer [Fogo inextinguível] (1969), Harun Farocki, após ter lido o testemunho da vítima vietnamita de um bombardeamento americano com napalm, dirige-se ao espectador com estas palavras: “Como é que podemos mostrar-vos o napalm em acção? E como é que podemos mostrar-vos as lesões causadas pelo napalm? Se vos mostrarmos fotografias de queimaduras de napalm, fecharão os olhos. Primeiro fecharão os olhos às fotografias. Em seguida fecharão os olhos à memória. Depois fecharão os olhos aos factos. E depois fecharão os olhos a todo o contexto. Se vos mostrarmos uma pessoa com queimaduras de napalm, ferimos os vossos sentimentos. Se ferirmos os vossos sentimentos, sentir-se-ão como se tivéssemos experimentado napalm em vocês, à vossa custa. Podemos apenas dar-vos a sombra de uma ideia de como funciona o napalm.” Farocki pega então num cigarro aceso, que esmaga no braço. Substituindo o efeito da explosão de uma bomba de napalm pela queimadura mais familiar – e quase insignificante – de um cigarro, Farocki propõe-se dar uma ordem de grandeza às imagens banalizadas das explosões de bombas de napalm e provoca assim um sentimento de horror, tanto a ordem de grandeza dessas dores ultrapassa a nossa compreensão. Nicht löschbares Feuer é uma obra representativa da constante preocupação de Farocki com a análise das relações entre a percepção e o intelecto, entre as imagens e as suas significações.


As investigações e reflexões de Farocki sobre a utilização e a manipulação das imagens tomam na maioria das vezes a forma de “filmes-ensaio”, que justapõem imagens originais – filmadas por Farocki –, imagens de arquivo, e as imagens de textos filmados transcrevendo um comentário em voz off. As imagens de arquivo provêm das mais variadas fontes: arquivos do Estado e arquivos militares, filmes industriais e de instruções, publicidade, vídeo-vigilância, filmes de amadores, telejornais ou ainda excertos de “clássicos” da história do cinema. Farocki procede contudo não tanto à maneira de um cinéfilo, mas de um médico legista investigando sobre as causas de um crime ou de uma doença, e examina meticulosamente esse corpus audiovisual para lá descobrir provas. Isolando ou reconfigurando essas imagens, Farocki põe a nu os pressupostos políticos e económicos que presidem à formação (e à deformação, e à desinformação) dos cidadãos contemporâneos. Mostra as derivas ideológicas das imagens tais como são orquestradas pelo Estado moderno. Em Die Bewerbung [A Candidatura] (1997), filma um curso de preparação para entrevistas de emprego, uma formação proposta às pessoas desempregadas, e revela a mecânica de condicionamento e de alienação do desempregado que tem que aprender a vender-se.


Farocki interessa-se igualmente pela emergência de novos regimes visuais tais como as imagens introduzidas na vida corrente pela vídeo-vigilância ou ainda as imagens introduzidas nos telejornais de todo o mundo por ocasião da primeira guerra do Golfo, que mostravam o voo de um míssil efectuando um “golpe cirúrgico”. Na trilogia Auge/Maschine [Olho/Máquina I] (2001-3), explora os procedimentos de vigilância electrónica, de reconhecimento de um objecto ou terreno tais como são utilizados pelas ditas “armas inteligentes”. Analisa a forma como os movimentos de percepção que são assim operados pela evolução das tecnologias da imagem influenciam as nossa representações da realidade. Por outras palavras, a forma como essas tecnologias da imagem recaem afinal sobre o exercício do poder e do controle dos cidadãos.


Ao longo dos dez últimos anos, os filmes de Farocki (mais de 100 filmes realizados desde os anos 1960) parecem ter recuperado um interesse não só público (provavelmente devido à actualidade e à acuidade das questões que Farocki coloca sobre o papel das tecnologias da imagem e da informação) como também profissional, provavelmente devido neste caso à propensão dos museus e das galerias a alargar a sua área de acção a outras práticas artísticas tais como a música, o design ou o cinema. Em 2009, Farocki apresentou o seu trabalho em dez exposições individuais, em lugares de prestígio tais como o Jeu de Paume (com Rodney Graham) em Paris, ou o Museum Ludwig em Colónia/Alemanha, e participou igualmente em dezenas de exposições colectivas internacionais. Esta rápida adaptação ao mundo da arte contemporânea deve-se provavelmente à sua condição de realizador independente de longa data, endurecido pelas condições de produção frequentemente improvisadas, mas também à plasticidade dos seus “filmes-ensaio”, que são actualmente apresentados sob a forma de instalações em ecrãs múltiplos, ocupando salas inteiras de museus ou galerias, e nas quais o espectador circula observando os seus contemporâneos a ser filmados e observados.




Texto adaptado do artigo “Regarding History”, de Coco Fusco,
publicado na revista Frieze 127, Novembro-Dezembro 2009.








FILMES PARA CONSULTA


Ein Bild [Uma Imagem], 1983
O tema deste filme veio de quatro dias passados num estúdio, a trabalhar numa fotografia para a página central da revista Playboy. A revista em si trata de cultura, de carros, de um certo estilo de vida. Talvez todos esses aparatos estejam lá só para encobrir a mulher nua. Talvez seja como um rolo de papel. A mulher nua no meio é um sol em torno do qual gravita um sistema: de cultura, de comércio, de vida! (É impossível olhar ou filmar a contraluz.) Podemos facilmente imaginar que as pessoas que criam uma tal imagem, cuja gravidade se supõe que segure tudo aquilo, executam a sua tarefa com tanto cuidado, seriedade, e responsabilidade, que é como se estivessem a separar urânio. Este filme, Uma Imagem, é parte de uma série em que tenho a vindo a trabalhar desde 1979. A estação de televisão que mo encomendou assume nestes casos que estou a fazer um filme que critica o tema do qual trata, e o proprietário ou gerente da coisa filmada assume que o meu filme lhes faz publicidade. Não tento fazer uma coisa nem outra. Também não pretendo fazer algo entre as duas, mas algo que esteja para lá de ambas. (Harun Farocki, Celulóide, n° 27, Outono de 1988)


Die Schulung [A Doutrinação], 1987
Este filme é sobre um seminário de cinco dias cujo objectivo é ensinar a gerentes comerciais como “vender-se” melhor. Desenhado para gerentes, o curso ensina as regras básicas da dialéctica e da retórica, e dá formação em linguagem corporal, gestualidade e expressão facial. O objectivo de vender alguma coisa sempre foi um princípio da acção comercial. Mas só através do casamento da psicologia com o capitalismo moderno é que a ideia de se vender a si próprio vem a ser aperfeiçoada.
(Lutz Hachmeister)


Videogramme einer Revolution [Videograma de uma Revolução], 1992
Na Europa, no Outono de 1989, a história aconteceu diante dos nossos olhos. O “Videograma” de Farocki e Ujica mostra a revolução romena de Dezembro de 1989 em Bucareste, numa forma de historiografia baseada nos novos media. Os manifestantes ocuparam a estação de televisão [em Bucareste] e transmitiram continuamente durante 120 horas, estabelecendo assim o estúdio de televisão como novo local histórico. Entre 21 de Dezembro de 1989 (o dia do último discurso de Ceaucescu) e 26 de Dezembro de 1989 (dia da primeira síntese televisiva do seu julgamento), as câmaras filmaram quase sem excepção acontecimentos nos mais importantes locais de Bucareste. O suporte de transmissão determinante de uma época sempre marcou a história, e de forma quase inequívoca no caso da história da Europa moderna. Esta foi influenciada pelo teatro, de Shakespeare a Schiller, a depois pela literatura, até Tolstoy. Como sabemos, o século XX é fílmico. Mas só com a câmara de vídeo, com as suas possibilidades acrescidas em termos de filmagem do tempo e em termos de mobilidade, é que o processo de filmagem da história se pode completar. Na condição, claro está, de haver história. (Andrei Ujica)
Harun Farocki concebeu e montou “Videograma de uma Revolução” juntamente com Andrei Ujica. Nascido em Timisoara em 1951, Ujica é um escritor romeno que vive na Alemanha desde 1981, onde é professor universitário de literatura e de teoria dos media. Tem bons contactos com amigos e colegas romenos, que não só abriram os arquivos da televisão aos autores, mas permitiram-lhes igualmente entrar em contacto com operadores de câmara de estúdios de filmagem estatais e com vários videastas amadores que tinham documentado os acontecimentos nas ruas de Bucareste, muitas vezes dos telhados de edifícios altos. “Se no início da revolta apenas uma câmara ousou filmar”, declarou Farocki, “no dia seguinte havia centenas delas em acção.” (Dietrich Leder, Film-Dienst 24/92)
Die Bewerbung (A entrevista, 1997)
No Verão de 1996, filmámos cursos de formação em elaboração de candidaturas, nos quais se aprende como candidatar-se a um emprego. Os que deixam a escola, os que têm formação universitária, pessoas que fizeram uma segunda formação, os que estão há muito tempo sem emprego, viciados em droga recuperados, e gerentes de nível intermediário – todos devem aprender como comercializar-se e vender-se, uma habilidade designada pelo termo “auto-gerência” [self-management]. O “eu” talvez seja apenas um cabide metafísico onde pendurar uma identidade social. Kafka foi quem comparou ser aceite num emprego à entrada no Reino dos Céus; os caminhos que levam a um e a outro são totalmente incertos. Hoje em dia fala-se de arranjar um emprego com um servilismo extremo, mas sem grande esperança. (Harun Farocki)


FONTE: www.farocki-film.de (21 de Dezembro de 2009)


OS FILMES TÊM LEGENDAGENS EM INGLÊS.




Eye/Machine I, Harun Farocki. 2000. DR.




Prison Images, Harun Farocki. 2000. DR.




Videograms of a Revolution, Harun Farocki & Andrei Ujica. 1992. DR.




Harun Farocki
Nasceu em 1944 em Novi Jicín, na actual Republica Checa.
Estudou na Deutsche Film Fernsehakademie Berlin (DFFB) [Academia de Cinema e Televisão de Berlim], de onde foi expulso em 1968 por razões políticas. Para além de escrever textos teóricos – entre 1974 e 1984 foi autor e editor da revista Filmkritik de Munique – tem assinado o cenário de vários filmes e produções televisivas. O seu trabalho foi apresentado na Documenta 10 & 12 de Kassel, bem como em várias retrospectivas internacionais, tendo recebido muitos prémios.


Mais informações sobre Harun Farocki:
Website oficial do artista: www.farocki-film.de
Filmes online: www.docalliancefilms.com
Extractos de filmes no Vídeo Data Bank: http://www.vdb.org/

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